
Muralismo feito no Morro dos Macacos, Vila Isabel, pelo Movimento de Organização de Base – RJ.
O dia 20 de novembro não é uma data de comemoração, mas sim de rememoração, com orgulho, da história de luta do povo preto que desde a chegada dos primeiros navios negreiros, enfrenta de forma nada passiva a exploração de nossa mão de obra e a rapina opressiva que chacina nossas vidas, seja com o chicote do senhor de engenho, com o cárcere ou com a arma da polícia.
A data é uma referência ao assassinato de Zumbi (RATTS, 2007), guerreiro do povo preto que liderou o Quilombo de Palmares durante os enfrentamentos contra os capitalistas brasileiros. Palmares é até hoje o mais longo processo de rebelião de escravos da história da humanidade; tendo ocupado um espaço que equivale, em tamanho, ao estado de Alagoas; com uma população em torno de 20 mil pessoas; praticando agricultura de diversas variedades alimentares exterminando a miséria; e tendo resistido a dezenas de incursões militares, que foram incapazes de superar a determinação guerrilheira daqueles homens e mulheres que não aceitariam voltar à vida de escravidão. E que lutaram, não só para não voltar a ter grilhões, mas também para manter sua sociedade na qual não reinava o dinheiro e na qual a propriedade estava coletivizada (GALEANO, 1999).
E embora seja o mais conhecido, Palmares não foi o único Quilombo do Brasil. Diversos outros se organizaram, tais como: Quilombo do Rio Vermelho, na Bahia; Quilombo de Capela, no Sergipe; Quilombo do Ibura, Pernambuco; Quilombo do Preto Cosme, Maranhão; Quilombo Grande, Minas Gerais entre outra centena de quilombos (RATTS, 2007). Tampouco Zumbi o único líder-guerreiro, além dele temos: Tereza de Benguela, Aqualtune, Dandara, Ganga Zumba, dentre outras milhares que o nome não ficou registrado. Todos e todas com o mesmo objetivo: resistir e enfrentar o sistema escravocrata vigente!
Foram tantos os quilombos surgidos em solo brasileiro que podemos falar da existência de um processo de luta chamado quilombagem. Pois os quilombos não foram só o refúgio dos que já não mais aguentam ser escravos, foram as primeiras ferramentas de luta organizada do povo preto em resposta ao desenvolvimento do capitalismo, que tinha na escravidão o seu grande pilar. A quilombagem desgastou o escravismo e foi a grande responsável pelo fim da escravidão, não a bondade de uma rainha branca (DAMASCENO, 2018).
Junto à organização em sociedades livres – os quilombos – o povo preto articulava justiçamentos de seus algozes, saques, queima de fazendas, sabotagem alimentar, tomada de terras, entre outras formas de banditismo por necessidade (GALEANO, 1999). Deixando nítido que longe de uma aceitação passiva da escravidão, o que se viu em terras brasileiras foi um intenso confronto, marcado pelo sangue. Ao ponto que em 1835, o governo decreta que a vida em quilombos torna-se crime punível com a degola.
Apesar de ser o principal mecanismo de resistência do povo preto, erra quem pensa que nos quilombos havia apenas ex-escravos. Os quilombos também receberam pretos livres, trabalhadores brancos pobres, indígenas e prostitutas, em resumo, todos os excluídos e excluídas que buscavam por um espaço de luta e organização coletiva (MOURA, 1989). Indicando o único caminho possível para a luta social: a unidade entre os de baixo, para o confronto radical, organizado e determinado com os de cima.
O fim da escravidão foi obra da luta do povo preto, mas o fim do racismo só pode ocorrer com o fim do capitalismo.
Os capitalistas, temendo que da quilombagem resultasse uma revolta social que levaria o povo preto a assumir o poder político e econômico do Brasil, cederam, assinando o fim da escravidão em 1888, mas o fizeram em seus termos, para preservar a sua capacidade de superexplorar.
Sem terras, sem propriedades, sem formação básica, sem casa e sem emprego, os homens e as mulheres pretas não tiveram outra opção que não se submeter a salários de miséria em trabalhos degradantes. Assim, o fim da escravidão não representou liberdade (GÁS-PA, 2014).
E não bastasse lançar o povo preto à miséria, os capitalistas brasileiros implementaram um programa de imigração de trabalhadores brancos, pois queriam embranquecer o Brasil, livrar o país do que eles chamavam de “mancha negra” (MUNANGA, 2019). Para isso, lançaram mão de todas as armas que puderam: desemprego, fome, exclusão social, negação ao acesso à moradia, aprisionamento e a chacina nas mãos da polícia.
1888 pode até parecer longe, mas não é. As consequências da escravidão e dessa falsa abolição são sentidas até os dias atuais. O povo preto ainda é o que amarga as maiores taxas de desemprego e pobreza, com as menores taxas de escolaridade; o encarceramento em massa atinge diretamente os jovens pretos e o extermínio ocorre cotidianamente pelas mãos da PM, como visto nas favelas cariocas, com covardes assassinatos diários, inclusive de crianças, como o da menina Agatha Félix, de apenas 8 anos ou mesmo dentro dos presídios, como o histórico caso do Carandiru, que há 27 anos deixa impune os PMs que mataram 111 presos desarmados.
E são as trabalhadoras pretas que mais sofrem, já que, além de lidar com o racismo e a pobreza, têm que enfrentar o patriarcado. O reflexo disso faz com que elas, em sua maioria, possuam os menores níveis de escolaridade, levando a ter subempregos, com salários baixíssimos e condições precárias de manter sua existência e de suas famílias. Fortalecendo o estigma, vale comparar e destacar que entre 2007 e 2017, a taxa de homicídios de mulheres pretas cresceu 29,9%, enquanto das não-negras cresceu 4,5% (IPEA, 2019). As mulheres pretas ainda sofrem com uma enorme sexualização, sendo vistas como mulheres “para pegar e não para casar”. Em muitos casos tendo até que cuidar dos filhos sozinhas. A tripla agressão – classe, raça e gênero – deferida para a maior parte das mulheres negras, mostra as faces mais cruéis possíveis do sistema capitalista e de suas contradições.
Quando olhado de perto, vemos que os desafios que hoje estão colocados para o povo preto não são novos. Os inimigos da liberdade real são os mesmos de quando a escravidão reinava aqui: os capitalistas, que nos vendiam ontem e nos chacinam hoje.
Portanto, a solução para superar a miséria, o extermínio, a fome e o desemprego é nos organizarmos, tomando o processo de a quilombagem como norte, unirmos forças entre o conjunto dos trabalhadores – brancos e pretos – os excluídos, as mulheres prostituídas, os povos originários e os favelados para, de forma organizada, construirmos uma alternativa verdadeiramente socialista, capaz de garantir a verdadeira liberdade.
Não devemos nutrir ilusões em candidatos, sejam eles da cor que forem, tão pouco achar que a melhoria das condições de nossa vida poderá vir a partir de um ideal de representatividade vazio que permite uns poucos pretos chegar em altos cargos.
Diante do avanço do capital sobre nós, com ataque aos direitos trabalhistas, destruição da nossa aposentadoria, helicópteros sobrevoando nossas casas e desalojamentos é hora de repetir Palmares, é hora de a quilombar! Organizar a resistência em cada periferia, local de estudo e trabalho!
RATTS, Alex. Eu sou atlântica. Sobre a trajetória de vida de Beatriz Nascimento. Sao Paulo: Imprensa Oficial do Estado de Sao Paulo: Instituto Kuanza, 2007.
GALEANO, Eduardo. As veias abertas da América Latina. 12. Edição. São Paulo: L&PM, 1999.
MOURA, Clóvis. História do negro brasileiro. Editora Ática, 1989.
DAMASCENO, W. M F. Quilombos: os primeiros organismos de duplo poder do Brasil, 2018.
GÁS-PA. O lugar do racismo na luta de classes brasileira. O dilema do proletariado preto, 2014
UNANGA, Kabengele. Rediscutindo a mestiçagem no Brasil: identidade nacional versus identidade negra. Autêntica Editora, 2019.
IPEA. Atlas da Violência: Disponível em: <http://www.ipea.gov.br/portal/images/stories/PDFs/relatorio_institucional/190605_atlas_da_violencia_2019.pdf> Acesso em: 17 Out. 2019. p. 38.
Posted on 13/11/2019
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